NOTA PÚBLICA – TRAGÉDIA EM SÃO SEBASTIÃO

O IABsp vem a público para aprofundar a reflexão a respeito da tragédia ocorrida no litoral de São Paulo e lamenta pelas vítimas, por aqueles que perderam entes queridos, pelas famílias que sofreram perdas emocionais e materiais irreparáveis.

O IABsp vem a público para aprofundar a reflexão a respeito da tragédia ocorrida no litoral de São Paulo e lamenta pelas vítimas, por aqueles que perderam entes queridos, pelas famílias que sofreram perdas emocionais e materiais irreparáveis. O índice histórico das precipitações no último final de semana e os consequentes deslizamentos de terra em áreas ocupadas por moradias na Serra do Mar explicitam uma conjuntura catastrófica nos dias atuais. É preciso que se amplie urgentemente as discussões e políticas públicas acerca da segregação socioespacial e da emergência climática e seus impactos nas cidades, seja na perspectiva das moradias e ocupações em áreas de risco, das infraestruturas urbanas, da relação das cidades com os recursos naturais e do racismo ambiental evidenciado em cada novo desastre climático.

O Instituto participa, desde sua fundação em 1943, de forma crítica e propositiva do debate nacional e local sobre as cidades brasileiras, buscando apontar problemas que se entrelaçam em sua produção, como moradia, gestão pública, paisagem e enfrentamento das desigualdades. Historicamente, o IABsp cumpriu um papel importante na formulação e acompanhamento de políticas públicas urbanísticas.

As sucessivas catástrofes ocorridas em cidades brasileiras, com consequências fatais particularmente para a população moradora das áreas urbanas precárias e de risco foram resultado de eventos climáticos extremos, que surpreenderam a população residente, gestores públicos, e até mesmo pesquisadores e técnicos responsáveis pelo monitoramento climático. Tais fenômenos extremos, infelizmente, serão cada vez mais frequentes. E, malgrado inéditos em seu rigor, eram previsíveis, da mesma maneira como eram previsíveis as tragédias ocasionadas pelo encontro das forças naturais com a fatura histórica da produção irresponsável de nossas cidades.

A tragédia, portanto, não pode ser tomada como fato meramente presente. Para compreendê-la em sua integralidade, é fundamental revisitar a construção de cidades e assentamentos humanos, pautada por um pensamento urbanístico que não apenas frequentemente prioriza interesses econômicos às condições naturais, mas também relega populações vulneráveis às condições mais perigosas de habitat enquanto direciona infraestrutura à produção de valor imobiliário. No caso do litoral norte de São Paulo, esta combinação se mostra em décadas de ação de proprietários das terras originalmente ocupadas pela comunidade caiçara, junto a agentes do mercado imobiliário, especializado na produção de residências de veraneio, exerceram forte lobby pelo afastamento das famílias de baixa renda das áreas urbanas turísticas e valorizadas, próximas à orla, com infraestrutura e de alto valor imobiliário.

Esse fenômeno, ao contrário de particular, pode ser considerado como um exemplar do processo generalizado de periferização que incide especialmente sobre a população pobre, preta, parda, indígena e majoritariamente feminina. Em muitos casos, tais comunidades foram deslocadas para áreas ambientalmente protegidas não indicadas para ocupação, por conta dos conhecidos riscos naturais e sanitários relacionados, como encostas, áreas de mananciais e áreas verdes, áreas nas quais os desastres ambientais são geralmente fatais. Configuram-se cenários de injustiça socioambiental e de forma mais específica, como situações de racismo ambiental.

A situação de emergência climática e o aumento de episódios de chuvas excessivas também não podem esconder a persistente negligência de governos, seja federal, estadual e municipal, que se reproduz em todo o país, não cumprindo com suas respectivas responsabilidades constitucionais de prover infraestrutura, viabilizar habitação e saneamento em quantidade e qualidade suficientes para todos os habitantes e garantir a proteção dos sistemas naturais. Do ponto de vista do planejamento, apesar de os planos de ação climática, e instrumentos que incorporem as mudanças climáticas em planos e projetos locais, serem ferramentas fundamentais de planejamento de ações em resposta à crise climática, apenas 11 das 27 capitais possuem um, segundo levantamento da Rede ICLEI. Na esfera do orçamento federal – que outrora chegou a contar com um programa especificamente destinado ao enfrentamento de riscos de deslizamento, chamado PAC Encostas – a união reduziu o recurso reservado para novos projetos de infraestrutura voltados para a mitigar os impactos das  mudanças climáticas, que caiu de 11 bilhões de reais atualizados para cerca de 1 bilhão, segundo o Instituto Talanoa. Se, por um lado, há redução de orçamento, por outro, nota-se que, mesmo o recurso disponível para melhoria da infraestrutura é subutilizado.

Os municípios do litoral paulista recebem royalties desde 2010 das concessionárias que exploram petróleo na região. Os valores são arrecadados e distribuídos entre os entes da federação, de acordo com legislação federal específica. Em 2022, o município de São Sebastião recebeu mais de 145 milhões de reais em royalties do petróleo e, somados os valores destinados aos municípios do litoral norte de São Paulo, afetados pelo evento climático extremo, foram mais de 700 milhões de reais. Não há obrigação na lei, contudo, para um limite mínimo de aplicação desse valor em obras de infraestrutura que adaptem os assentamentos à nova realidade gerada pelas mudanças climáticas, o que seria recomendável, uma vez que é a queima do mesmo petróleo uma das principais fontes de emissão de gases de efeito estufa que ocasiona eventos extremos como o que ocorreu em São Sebastião.  Além disso, esses recursos não são destinados no orçamento de forma participativa, e sua aplicação deveria ter maior transparência.

A participação social efetiva, e a transparência no uso de recursos financeiros destinados aos municípios são ferramentas de controle social fundamentais para que haja investimento nas cidades, de forma a adaptá-las às mudanças climáticas. No caso do litoral paulista, o desequilíbrio de poder entre pressões do mercado imobiliário e demandas sociais teve resultado catastrófico. É fundamental a garantia de que os investimentos sejam feitos  conforme planos municipais, locais ou setorizados específicos e articulados entre si, como os de habitação, saneamento e proteção ambiental.

Restabelecer uma governança em que o poder público federal atue como agente estruturador e financiador de políticas de prevenção de desastres, mobilizando ações abrangentes, desde a melhoria da infraestrutura das áreas de risco com enfoque na adaptação climática, à criação de uma rede nacional de monitoramento, alerta e capacitação de agentes de defesa civil, pode ser um caminho. É necessário também reconstruir e habilitar o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil para que se tenha maior colaboração entre poderes nacionais e locais no sentido de que ações emergenciais sejam tomadas no seu tempo devido, reduzindo o risco de perdas humanas claramente evitáveis. Nesse sentido, são bem-vindas as iniciativas recentes de criação, dentro do Ministério das Cidades, de uma secretaria de Políticas para os Territórios Periféricos, e seu departamento para prevenção de desastres climáticos.

Os programas públicos de provisão de habitação de interesse social precisam incluir em sua estrutura a agenda de mitigação e adaptação climática. A construção de um habitat adequado para as necessidades humanas, mais do que nunca, passa por uma percepção aguçada das novas condições naturais, de uma nova relação com o meio ambiente e com a paisagem, e de um entendimento de rede sobre as condições de infraestrutura e gestão das águas. É premente a revisão do programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, e a agenda das agências estaduais e municipais de habitação para a inclusão desta temática transversal.

A curto prazo, é preciso, como sociedade, tomar conta da fatura histórica de uma ocupação desregulada e excludente do território, e implementar as ações necessárias de proteção. Já a médio e longo prazo, é preciso rediscutir o próprio modelo de desenvolvimento, e incluir o debate sobre um novo paradigma de ocupação do solo urbano na pauta do poder público, instituições privadas, e na formação dos futuros profissionais da arquitetura e do urbanismo.

Com essa motivação, o IABsp organizou o GT Cidades e Emergência Climática, formado em janeiro de 2023, fruto de debates a respeito do papel das cidades e seu ambiente, enquanto habitat fundamental da humanidade, na adaptação a uma nova condição de clima, como também no combate e mitigação das emissões de carbono e outros componentes causadores do efeito estufa. Neste cenário atual de emergência, o grupo de trabalhos vem organizando uma pauta de ações a serem colocadas em prática já no primeiro semestre de 2023. Serão abordados os eixos de adaptação climática e mitigação de emissões, envolvendo especialistas, ativistas, pesquisadores e gestores da área, com o objetivo de formar um arcabouço de ações e reflexões mais profundas a respeito de um tema que não pode mais aguardar.

A emergência climática é real. É urgente preparar as cidades para esse novo paradigma. A adaptação climática, contudo, não pode ser realizada sem pautar também injustiças sociais históricas, que datam da própria formação de nossa sociedade. A segregação espacial que traduz a desigualdade social em nossa sociedade deve ser revista, e deve mobilizar todos os atores urbanos, em especial, gestores, arquitetos, urbanistas e paisagistas envolvidos no desenho das cidades e suas infraestruturas.

São Paulo, 28 de fevereiro de 2023.

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