O Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo (IABsp) em apoio à solicitação do Movimento do Memorial dos Aflitos que pede a suspensão e revogação do Edital nº 01/SMC-GAB-/2022 “Memorial dos Aflitos”, lançado em 28 de novembro de 2022, vem recomendar a revisão e a atenção das ações dele decorrentes. Membros da atual gestão já haviam se manifestado em texto escrito em conjunto com Joice Berth e Gleuson Pinheiro, intitulado “Onde está a negritude no projeto do Memorial dos Aflitos?” e publicado em 9 de dezembro de 2022, no Portal Terra, no qual foram apontados, entre outros, problemas na disponibilização de bases do concurso, no prazo exíguo para a elaboração de propostas, na ausência de uma maior participação das comunidades e equipes técnicas na elaboração do edital, bem como de uma maior divulgação em território nacional, e nos meios especializados, uma vez que se trata de um concurso de extrema importância para a história do Brasil.
Das condições insatisfatórias para a elaboração do Estudo Preliminar exigido pelo concurso, resultaram boa parte das falhas observadas posteriormente, no que refere à entrega dos projetos apresentados. Foram validadas para o concurso apenas três inscrições, número muito aquém do esperado para um Edital referente a projeto de relevância nacional e histórica. Mesmo entre os projetos entregues, houve críticas severas divulgadas em comunicações da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (UNAMCA), uma das entidades centrais na luta pela preservação da memória e patrimônio referentes ao território da Capela e Cemitério dos Aflitos. Apontou-se que o projeto vencedor desconsiderava os significados religiosos e simbólicos dessa materialidade e suas relações contemporâneas com povos de matriz africana e indígenas.Após solicitações do Movimento do Memorial dos Aflitos, a Secretaria Municipal de Cultura concordou com a realização de uma reunião com os grupos relacionados à Capela dos Aflitos e o escritório de arquitetura responsável pelo projeto vencedor do Memorial, com vistas à promoção de debate público e possível solução das insatisfações apontadas. As deficiências de comunicação e condução do concurso tornaram-se evidentes, mais uma vez, nesse encontro, resultando na sequência na desistência do escritório vencedor em dar continuidade à contratação e execução do projeto.
Do ponto de vista dos aspectos urbanísticos, sobretudo ao que condiz ao patrimônio cultural, não tivemos a devida amplitude dos debates e do escopo do Edital em evidenciar a importância de alinhar a negritude aos processos de urbanização de São Paulo. A memória negra ainda segue sendo tratada pelo poder público de maneira segregada dos processos ditos hegemônicos, ou seja, como se não fosse parte legítima da formação da cidade enquanto evidência social, econômica, política e cultural. Isso aponta para uma falha estrutural de um Edital de concurso de projeto de arquitetura não conduzido por profissionais da arquitetura e do urbanismo, com falha de disponibilização de bases para a elaboração de propostas de participantes, sem a devida divulgação nos meios e canais próprios que alcancem arquitetos e urbanistas e sem a devida escuta da comunidade envolvida na construção do termo de referência, o que acaba por fragilizar todo o processo.
Concursos públicos de Arquitetura e Urbanismo são oportunidades de democratizar o acesso à arquitetura no caso de programas especiais e complexos, bem como oportunidades de amadurecimento profissional, dado o intenso processo de aprendizagem que oferecem por meio da sua formulação. É uma competição e também uma modalidade de licitação onde o principal objetivo é a contratação de um projeto de maior qualidade, amplamente debatido e criticado, colocando como prioridade das políticas públicas a produção de espaços e equipamentos qualificados para o conjunto da cidade e da sociedade. Temos exemplos de décadas, inclusive de paços municipais e o próprio Plano Piloto do Distrito Federal, que foram resultados de concursos públicos. Essa é uma expertise que não podemos abrir mão, adquirida ao longo de gerações de profissionais. Contudo, temos a responsabilidade de incluir a negritude, nas suas mais variadas frentes, nesses saberes profissionais acumulados. Os espaços de memória negra e indígena devem ser tratados com zelo pelo campo profissional e com dedicação e garantias do Estado na sua promoção e elaboração.
A atual gestão do IABsp compreende e reforça a importância histórica do conjunto da Capela e Cemitério dos Aflitos, que tem sido território reconhecido por povos afro-brasileiros e indígenas, em articulação com representantes de movimentos locais de descendentes de asiáticos. A capela, tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico (Conpresp) e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat), seu entorno, e o sítio arqueológico, recentemente declarado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), são patrimônios relevantes para a formação da cidade de São Paulo e a história brasileira, especialmente relacionados à história da escravidão e das populações subalternizadas, necessitando, portanto, de promoção de processos coletivos, públicos e adequados para quaisquer intervenções a serem realizadas. Em vista dos pontos descritos sobre a redação do Edital, a condução do processo e os acontecimentos subsequentes, o IABsp e o Grupo de Trabalho de Equidade Racial manifestam-se favoráveis à organização e realização de novo concurso, que incorpore ações participativas, e de diálogo entre agentes sociais e poder público na construção do Edital, visando a maior participação e adesão de inscritos no concurso, prezando por um processo com condução técnica adequada, além de prezar por maior inclusão racial e atenção às particularidades do terreno em questão.